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Entrevista: Juiz Murilo Abreu explica os impactos da reforma tributária

A promulgação da Emenda Constitucional 132, da reforma tributária, estabelece as bases de uma longa transição para unificar impostos sobre o consumo de estados e municípios, acabar com a guerra fiscal e dar mais transparência aos tributos pagos. É a primeira reforma ampla sobre o sistema tributário nacional realizada sob a vigência da Constituição Federal de 1988.



A emenda é oriunda da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019. O principal efeito da aprovação é a unificação, a partir de 2033, de cinco tributos — ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins — em uma cobrança única, que será dividida entre os níveis federal (CBS: Contribuição sobre Bens e Serviços) e estadual/municipal (IBS: Imposto sobre Bens e Serviços). 


O juiz Murilo Abreu, mestre em Direito Tributário pela UFMG, doutorando em Direito Tributário pela PUC Minas e ex-procurador do Estado de Minas Gerais, explica nesta entrevista o que muda, na prática, com a reforma e quais os próximos passos, já que vários temas sensíveis ficaram para este ano, pois o texto aprovado indica a necessidade de regulamentação de alguns assuntos por meio de leis complementares.

 

1) Quais as principais mudanças para o cidadão a serem implementadas com a promulgação da reforma tributária?

A principal mudança para o cidadão comum é que, ao invés de continuar pagando cinco tributos sobre o consumo e para três entes federados, quais sejam, ICMS (para os Estados), ISS (para os Municípios), PIS, COFINS e IPI (para a União Federal), ele passará a pagar apenas três, a saber, dois IVAs (Impostos sobre Valor Agregado) e um IS (Imposto Seletivo). O IVA será dividido em uma contribuição federal, a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e em um imposto, o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), de competência dos Estados, DF e Municípios. O terceiro imposto que teremos será o IS, de competência da União Federal e que incidirá sobre bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. A alteração mais drástica, sem dúvida, será a substituição do ICMS, principal receita dos Estados, e do ISS, principal receita dos Municípios de portes médio e grande, pelo IBS, que será um IVA de competência compartilhada entre Estados, DF e Municípios. Não só porque a tributação passará a ser no destino, ao invés de na origem, como é desde a criação do nosso sistema tributário, em 1965, e porque agora a não cumulatividade passará a ser plena, passando-se a adotar o crédito financeiro ao invés do físico – como se espera que realmente o seja. Mas porque os Estados, DF e Municípios não mais terão competência para instituir e arrecadar, diretamente, sua principal fonte de receita. Quem passará a fazê-lo, em nome deles, será o chamado Comitê Gestor do IBS, uma entidade pública independente, formada por representantes indicados pelos Estados, DF e Municípios e que terá, não só a função de arrecadá-lo e distribuí-lo àqueles entes subnacionais, mas de regulamentá-lo e aplicar sua legislação, além de decidir todo o seu contencioso administrativo. Este será um dos maiores desafios da reforma, por se tratar de entidade sem precedentes em toda a história brasileira. Inclusive, é o argumento pelo qual vários consideram a reforma inconstitucional, por violar a cláusula pétrea do federalismo.

 

2) Qual o impacto da reforma no trabalho dos magistrados que lidam com o direito tributário no dia a dia?

Os magistrados estaduais que hoje decidem questões relativas a ICMS e ISS, seja em execuções fiscais, exceções de pré-executividade, embargos à execução fiscal ou nas ações antiexacionais (mandados de segurança, ações anulatórias, declaratórias, consignatórias, etc.), passarão a decidir, cumulativamente, lides sobre o IBS, assim como os magistrados federais que cuidam de ações sobre PIS, COFINS e IPI, também passarão a decidir disputas envolvendo a CBS. Mas a partir de quando? Os anos de 2024 e 2025 serão dedicados à elaboração das leis complementares que regulamentarão a reforma, dentre elas a que instituirá os elementos definidores do IBS e da CBS. Como o Brasil é um país altamente litigante, tenho a certeza de que, antes que o IBS e a CBS entrem em vigor, o que acontecerá em 1º de janeiro de 2026, já serão ajuizadas ações, tanto em controle difuso quanto concentrado, questionando vários de seus aspectos. Acho então que, antes mesmo que o IBS entre em vigor, os magistrados estaduais que lidam com o Direito Tributário no dia a dia já serão provocados a decidir ações relativas a ele. Se isto acontecerá em 2024 ou em 2025, dependerá de quando for promulgada a LC conjunta do IBS e da CBS. O mesmo raciocínio vale para os magistrados federais, no tocante à CBS e aos tributos que serão extintos, quais sejam, o PIS, a COFINS e o IPI. Em paralelo a isto, os magistrados estaduais continuarão decidindo ações sobre ICMS e ISS ainda por longos anos. Não só porque os respectivos processos já em curso continuarão ainda por anos a fio, até se extinguirem em definitivo, como porque novas ações, cobrando ou questionando algum aspecto ou autuação de ICMS ou ISS, ainda poderão ser ajuizadas, a princípio, até 2037, considerando que aqueles dois tributos serão extintos em 31 de dezembro de 2032.

 

3) A reforma trará, na prática, o fim da guerra fiscal entre os estados?

Sim. O que permite a guerra fiscal entre os estados, em regra, é a possibilidade que todos eles têm de conceder algum tipo de benefício fiscal aos contribuintes, como isenção de ICMS por certo tempo ou a concessão de regime especial, para se instalarem em seu território ou lá continuarem, mesmo que tal estado não tenha vocação regional para aquela atividade específica. Mas, quando os Estados renunciam à parte do ICMS que deveria ser paga por aqueles contribuintes beneficiários, os demais acabam pagando mais. E tais benefícios são concedidos sem a devida transparência. Isto só acontece porque a tributação sobre o consumo no Brasil ocorre na origem. De modo bem simplificado, o ICMS é cobrado no Estado onde a mercadoria tem saída e o ISS, no Município em que o serviço é prestado. Esta técnica de tributação é injusta porque beneficia os estados e municípios produtores - que são poucos no Brasil – em detrimento dos consumidores – maioria esmagadora. Mas é assim desde o início do nosso sistema tributário, com a Emenda Constitucional nº 18, de 1965, à então Constituição de 1946 e cuja estrutura vigora até hoje. Com a reforma, a tributação passará a ser no destino, ou seja, apesar de as mercadorias e os serviços continuarem sendo produzidos e prestados, em sua maioria, em Estados e Municípios do sul-sudeste e seus destinatários estarem localizados nas demais regiões do país, é para estes últimos Estados e Municípios que a receita do IVA (IBS e CBS) será remetida. Ora, se assim será, então de nada adiantará o Estado/Município produtor/prestador conceder benefício fiscal, pois a receita do IVA não mais lhe pertencerá, mas ao Estado e Município de destino. Ademais, a legislação do IBS e da CBS será uma única, exceção feita apenas à sua alíquota, único elemento que poderá ser fixado por cada ente, a partir de referência posta pelo Senado Federal. Ou seja, outra grande vantagem trazida pela reforma será a unificação da legislação do ICMS e do ISS em uma única, ao contrário da barafunda de 27 regulamentos estaduais do ICMS e das 5.568 leis municipais de ISS hoje existentes.

 

4) Haverá também mudanças na tributação sobre patrimônio?

Sim. Mas pouca, porque o foco da EC nº 132 é a reforma da tributação sobre o consumo. Quanto ao ITCD, vedou-se a possibilidade, que antes havia, de realizar-se o inventário ou a doação em um Estado que exigisse uma alíquota menor, quando os bens fossem apenas móveis, títulos ou créditos. A partir de agora, o inventário ou a doação devem ser feitos, obrigatoriamente, no Estado em que era domiciliado o de cujos ou tiver domicílio o doador. Outra alteração relevante quanto ao ITCD: passou a ser progressivo em razão do valor do quinhão, do legado ou da doação. A partir de agora, então, os Estados podem tributar as maiores heranças com alíquotas mais altas. Sobre o IPVA, antes da reforma, suas alíquotas podiam ser diferenciadas apenas em razão do tipo e utilização do veículo; agora podem sê-lo também em razão do valor do veículo e de seu impacto ambiental. Ampliou-se ainda a sua incidência, para passar a abranger veículos aquáticos e terrestres. Pasmem os Colegas que não sabiam: até a EC nº 132, lanchas e jatinhos não podiam ser tributados pelo IPVA; a partir de agora, podem começar a sê-lo pelos Estados. Mas, ao mesmo tempo, foram inseridas exceções que, bem utilizadas pelos contribuintes “de posse”, pode levá-los a escapar à exação. Quanto ao IPTU, passou-se a permitir a atualização de sua base de cálculo por decreto, desde que antes definidos os critérios em lei municipal; trata-se de pleito antigo dos Municípios que a emenda acolheu. Tão ou mais importante que as alterações na tributação sobre o patrimônio, entretanto, é a reforma da tributação sobre a renda, que a EC nº 132 impôs que começasse dentro de 90 dias após a sua promulgação. A boa notícia é que ela já começou antes mesmo que a emenda fosse promulgada. Em 12 de dezembro de 2023, foi promulgada a Lei nº 14.754, apelidada “lei dos fundos dos super ricos e das offshores”, que já mudou a sistemática do imposto de renda das classes mais abastadas.

 

5) A reforma seria uma oportunidade de diminuir as desigualdades sociais. Isso será, de fato, possível? Como a reforma pode melhorar a realidade da população mais carente?

Toda reforma tributária é oportunidade para reduzir desigualdades sociais, porque a tributação tem a possibilidade única de fazer recair ônus maiores sobre quem ganha e tem mais e menores ou nenhum sobre quem ganha ou tem menos, pouco ou nada. A EC nº 132 reduziu a zero o imposto sobre o consumo dos produtos da cesta básica. Vários argumentam que se trata de medida insuficiente, pois tanto o rico quanto o pobre consomem produtos da cesta básica, ainda que o rico em maior quantidade. Ela ainda constitucionalizou, entre nós, o chamado cashback que consiste em retornar ao contribuinte de baixa renda o valor do tributo que pagou, no momento em que adquiriu certas mercadorias. Já existe em países como Uruguai, Argentina, Bolívia, Equador, Colômbia e Canadá. Mas muitos são os que afirmam que tal medida tem implementação difícil, senão impossível, dados os entraves burocráticos dos cadastros, além das fraudes que suscita, sendo mais aconselhável investir o montante do tributo que seria devolvido aos vulneráveis, em políticas públicas a eles destinadas. Mas será então que aquelas duas medidas, trazidas pela EC nº 132, serão suficientes para melhorar a realidade da população mais carente? Bom. O tempo dirá. Na minha opinião, o problema da desigualdade social no Brasil está arraigado de modo mais fundo em nossa estrutura, não sendo superado, na área tributária, porque nossa elite econômica, historicamente, não é tributada da mesma forma (elevada) como o são as classes média e baixa. Apesar de a Constituição de 1988 ter concebido um sistema tributário em que deveria prevalecer a capacidade econômica dos contribuintes, a igualdade, a pessoalidade, a universalidade e a progressividade da tributação, sua implementação real continua sendo sistematicamente bloqueada.

 

6) A reforma foi promulgada em dezembro de 2023 pelo Congresso. Como e quando ela será colocada em prática?

A EC nº 132 previu vários períodos de transição. Os que mais interessam a nós, contribuintes, pessoas físicas ou jurídicas, magistrados ou não, são os relativos ao Direito Tributário, ou seja, à relação Fisco-Contribuinte. São os seguintes: os anos de 2024 e 2025, serão dedicados à elaboração e aprovação das leis complementares que regulamentarão a reforma. Em 1º de janeiro de 2026, entram em vigor o IBS e a CBS, mas apenas com uma alíquota experimental de 0,1% e 0,9%, respectivamente. Portanto, o ICMS e o ISS continuarão sendo exigidos em paralelo. A partir de 1º de janeiro de 2027: 1) a CBS entrará plenamente em vigor, passando a ser cobrada com sua alíquota “cheia”; 2) serão extintos o PIS, a COFINS e o IPI; 3) o IS (Imposto Seletivo) começará a ser cobrado de modo integral; 4) o IBS continuará a ser cobrado com a alíquota de 0,1% durante os anos de 2027 e 2028. De 1º de janeiro de 2029 a 31 de dezembro de 2032, será aumentada a alíquota do IBS, na exata medida em que serão reduzidas as do ICMS e do ISS. Isto para que, a partir de 1º de janeiro de 2033, comece a cobrança integral do IBS e, por consequência, sejam extintos o ICMS e o ISS. Estes são os períodos de transição relativos ao Direito Tributário. Há outros, mas relacionados ao Direito Financeiro, ou seja, que regem a relação entre os entes federados, como, por exemplo, um que começará em 2029 e irá até 2077, relativo à forma como o Comitê Gestor distribuirá a receita auferida com o IBS, entre os Estados e Municípios.  

 

7) Há pontos do texto que ficaram em aberto, ou seja, há mudanças que não foram contempladas nessa primeira fase e ainda precisarão ser debatidas?

Sim. A EC nº 132 alterou profundamente os sistemas financeiro e tributário brasileiros, este último especificamente na parte do consumo. Como toda emenda à Constituição, ela traz apenas diretrizes gerais. A sua regulamentação é feita depois por lei complementar ou ordinária, conforme o assunto. No caso da reforma tributária do consumo, a maior parte das lacunas deixadas pela emenda constitucional será preenchida por leis complementares, porque a Constituição de 1988 determina caber àquela espécie normativa estabelecer normas gerais em matéria tributária, especialmente sobre a definição de tributos e respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes (artigo 146, inciso III, alínea “a). Apesar de alguns dizerem que a EC nº 132 deixou muitos pontos indefinidos, é preciso lembrar que se trata de uma emenda à Constituição, espécie normativa que, por essência, deve trazer apenas diretrizes gerais. A bem da verdade, a referida emenda já trouxe até um detalhamento muito extenso e profundo. Nenhuma constituição no mundo é tão detalhada quanto a brasileira, sobretudo na parte tributária. Normalmente, as Constituições fazem poucas ou nenhuma menção aos aspectos tributários, sendo eles extraídos de outros dispositivos constitucionais, como o do que prevê o federalismo, por exemplo, em países que adotam tal forma de estado. O que acontecerá entre nós é que os anos de 2024 e 2025 serão de intensas discussões e embates para a promulgação daquelas leis complementares, porque há muitas questões importantes a serem definidas, tanto de Direito Financeiro quanto de Direito Tributário. Mas é normal que assim o seja em reformas de tal porte.

 

 

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